por Jean-Pierre Deschepper
Fundo Nacional Belga para a Pesquisa Científica (F.N.R.S)
Tradução de Paulo Jonas de Lima Piva
Universidade Federal do ABC (UFABC)
Eis então esse primeiro volume, contendo uma parte da Memória. Mas antes mencionamos os três prefácios que, em mais ou menos 130 páginas, fazem um balanço do caso Meslier.
Em O homem, a obra e a reputação, o senhor Roland Desné expõe a vida e o pensamento de Meslier e os problemas que eles levantam, e que o exame dos arquivos e de múltiplos documentos nos permitem precisar e renovar. O personagem parece simples: ele não se mudou, durante toda a sua vida, de Etrépigny, aldeia situada perto de Mézières e onde ele foi nomeado cura logo após o seminário. Ali ele se nutriu de autores dos séculos XVI e XVII, aguçou sua reflexão e compôs na solidão do fim de uma vida clerical, à revelia de todos, uma longa memória à qual ele confiou seu pensamento, ao mesmo tempo ateu e comunista: fenômeno novo, pois tradicionalmente o ateísmo era aristocrático, enquanto que o comunismo se apresentava como uma exigência da consciência cristã. As condições do tempo e seu estado não lhe permitiram outra voz que a póstuma, se elevando de um manuscrito elaborado no segredo de um casa paroquial camponesa, que ele serviu de 1689 até a sua morte. Ele deixou, para a estupefação daqueles que não suspeitavam desta vida dupla, sua Memória, na qual o defunto cura precisou, no subtítulo, que ele havia escrito “para ser endereçado aos seus paroquianos após a sua morte (...)”. Ele deixou igualmente as Cartas aos curas da vizinhança, nas quais ele se desvendou, notas marginais sobre a Demonstração da existência de Deus, de Fénelon, e pregações manuscritas, das quais perdemos o rastro. Em 1734-1735 a Memória entrou nos circuitos de difusão clandestina, nos quais se pode assegurar que ela foi importante. É em 1762 que Voltaire publica o Extrato dos sentimentos de Jean Meslier, precedido do Resumo da vida do autor, e mutila o pensamento materialista, ateu e socialista de Meslier, ao qual Voltaire impõe em particular uma conclusão deísta. É assim que ele será ― mal ― conhecido, a ponto de não se hesitar no século XIX publicar no seu nome O bom senso, de Holbach. É impossível expormos aqui o detalhe da história da edição das obras de Meslier e dos problemas que ela levanta; reportamo-nos a este muito bom prefácio do senhor Desné, sólido e completo, no qual, por exemplo, podemos ler com interesse a história dos manuscritos da Memória.
O senhor Jean Deprun se empenhou em Meslier philosophe. O projeto filosófico de Meslier é coerente, pois trata-se de fundar a autonomia do mundo revelada pela física cartesiana: por um lado rejeita a metafísica cartesiana, e em particular critica a ideia de perfeição, por outro lado a reabilitação da ideia de natureza, a qual será compreendida num sentido dinamista. Em suma, trata-se de combater o criacionismo e de expor o materialismo. E toda a obra de crítica política e social de Meslier está subordinada à crítica necessária da religião, que é inseparável da crítica da metafísica da qual se alimenta a religião. O senhor Deprun estima que se viu demais em Meslier um gassendista, ainda que sua física seja a de Descartes, despojada de toda teologia. Ele retém do cartesianismo o que se adapta ao seu empreendimento ateu, ele rejeita “a teologia cartesiana em nome mesmo da física dos Princípios”, mas a reajustando à sua necessidade, graças às noções aristotélicas ou escolásticas que se parecem muito com as formas substanciais. Em teoria do conhecimento Meslier é igualmente cartesiano: confiança nas ideias claras. Ele está muito próximo de Malebranche, mas o expurga de toda referência a Deus. Ele dissocia as ideias de infinito e de perfeito, o que lhe permite inverter a prova ontológica ― que ele aceita ― da existência de Deus: a ideia do ser infinito contém a sua existência necessária, mas este ser infinito não é outro senão a matéria. Se o projeto de Meslier é coerente, suas teorias, que ele extrai de fontes variadas, não o são sempre. Ele se aproxima, por exemplo, da escolástica para insistir no empirismo, alternadamente segue Malebranche e dele se separa. Mas nós não poderíamos reprovar demais tudo isso em Meslier, que não repugnou em se medir com a filosofia, refugiado na sua solidão das Ardenas, sem vínculo com nenhum dos focos do pensamento da sua época, não contando senão com o seu raciocínio, suas lembranças de estudo e alguns livros.
O último prefácio é assinado pelo senhor Albert Soboul: A crítica social diante do seu tempo. Se Meslier atacava a religião no front ideológico, ele fez o mesmo no front social. Não podemos dissociar seu pensamento comunista do seu ateísmo, e seu pensamento em geral da sua crítica à sua época, a qual lhe impôs limites. Em sua crítica social, Meslier não estabelece laços entre estruturas sociais e economia. A desigualdade das condições sociais não pode vir senão da desigualdade dos bens fundiários, sem nenhuma menção aos bens mobiliários. Essas limitações da crítica social são as limitações da época e não do próprio Meslier. Do mesmo modo, ele não apreende o mecanismo de exploração social, mas denuncia a opressão fiscal do Estado. Ele critica a monarquia absoluta e aqueles que a caucionam (privilegiados, cortes de justiça) e prega a violência contra eles, mas ainda o senhor Soboul nos convida a não introduzirmos nessa linguagem da época o que nós imaginamos nela ver. Meslier propõe não a partilha igual, mas a comunidade dos bens, para um gozo comum desses bens, e a comunidade e a igualdade dos deveres; o utopismo tradicional transparece contudo aqui e lá, por exemplo, na ordem social sugerida. Em suma, Meslier decorre do comunismo agrário, do igualitarismo camponês, e não ainda do socialismo industrial; o senhor Soboul vê nele menos um revolucionário puro do que um profeta da revolução.
Meslier deixou três cópias autografadas de sua Memória. O senhor Desné apresenta aqui a mais completa, com indicação das variantes dos capítulos mais significativos. A ortografia foi respeitada, ainda que ela não seja regular, pois ela revela a cultura do autor. Regras sensatas foram adotadas quanto aos outros problemas colocados pelo estabelecimento do texto, pois não se tratava de fazer paleografia. Foram mitigados assim os usos próprios de Meslier por correções de bom senso. Boas notas, fac-símile e reproduções de documentos originais acompanham o primeiro volume desta edição, que é compreendida em três; o interesse suscitado pelo primeiro nos faz esperar que ela se completará rapidamente.
In: Revue Philosophique de Louvain. Quatrième série, tome 69, n°2, 1971. pp. 297-299.
Fonte:https://www.persee.fr/doc/phlou_0035-3841_1971_num_69_2_5609_t1_0297_0000_1